Homenagem à Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida
Homenagem à Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida
Bem-aventurados
os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3).
Dom Luciano
Pedro Mendes de Almeida SJ
Por Dom
Erwin Kräutler, Bispo do Xingu e Presidente do Cimi
Considero um privilégio ter sido convidado para, em
nome dos agraciados com a comenda Dom Luciano Mendes de Almeida, proferir um
discurso de agradecimento à Faculdade Arquidiocesana de Mariana. Faço-o com
alegria em homenagem ao venerável Servo de Deus que fora arcebispo de Mariana,
estimado e amado no Brasil e além das fronteiras da nossa Pátria.
Conheci Dom Luciano muito bem e os encontros que tive
com ele marcaram a minha vida. De fato, ele irradiava uma profunda paz que
contagiava a todos. Seus conselhos e sugestões partiram de um coração repleto
de amor e compreensão. Nunca duvidei de que estava diante de um santo. A
canonização é sempre um acontecimento “post mortem”. Geralmente passam-se
muitos anos até terminar o processo eclesiástico para uma mulher ou um homem
chegar à honra dos altares. No entanto há pessoas que o povo, mormente o povo
simples e humilde, já aclama em vida como santas, pois intui que aí há alguém
que se consagrou a Deus sem nenhuma restrição ou limite e dedica sua vida aos irmãos
e irmãs com um amor fraterno e generoso.
Para descrever a personalidade de Dom Luciano, penso
que a melhor opção é meditar a primeira das Bem-aventuranças do Sermão da
Montanha. Este sermão de Jesus relatado por São Mateus começa com uma
solenidade excepcional. Não há na Bíblia outra introdução tão solene a uma
prédica de Jesus ou de um dos profetas. Cada palavra tem seu peso. No original
grego são sete verbos numa única frase: “E Jesus – vendo as multidões – subiu à
montanha e – assentando-se – aproximaram-se dele os seus discípulos
e – abrindo a sua boca – os ensinava – dizendo“ (Mt 5,1-2):
Bem-aventurados
os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3).
O bom Deus dotou Dom Luciano com uma
rara inteligência, um raciocínio perspicaz, uma memória invejável e uma
sabedoria profunda. Inteligência, raciocínio e memória são sempre dons
congênitos. A sabedoria de Dom Luciano, porém, foi fruto de sua intensa e
ardente experiência de Deus. Realizou em toda a sua vida o que Paulo Apóstolo
escreveu aos Filipenses: “Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus:
“esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo” (Fil 2,7). Dom Luciano
não nasceu pobre, fez opção pela pobreza. Viveu uma vida “franciscana” na
simplicidade e modéstia e na radical obediência à vontade de Deus. Vejo hoje os
ideais de Dom Luciano concretizados no seu irmão de ordem, o nosso Papa
Francisco. Pobre em espírito é quem sabe que recebeu tudo de Deus ou para citar
mais uma vez Paulo Apóstolo que declara: “Pela graça de Deus sou o que sou” (1
Cor 15,10). Quem se dá conta de que “tudo é graça” não se vangloria de seus
talentos capacidades e competências e muito menos procura Ibope. Esta
bem-aventurança, de certo modo, é a síntese de todas as outras. Em uma mensagem
aos jovens o papa
Francisco se refere ao santo de quem adotou o nome quando foi eleito papa.
Podemos aplicar estas palavras perfeitamente ao nosso Dom Luciano: “Francisco
viveu a imitação de Cristo pobre e o amor pelos pobres de modo indivisível,
como as duas faces duma mesma moeda“.
Qual foi
realmente a identidade de Dom Luciano? Foi pobre diante de Deus a quem amou até
os recônditos de sua alma e, ao mesmo tempo, dedicado aos pobres com todas as
fibras de seu coração. Sabemos como vivia cercado de mendigos já quando era
bispo auxiliar de São Paulo. Existem verdadeiros fioretti sobre o amor que dedicou aos mendigos e moradores de
rua. Lembro-me que uma vez o procurei na sede da CNBB. Andei pelo segundo andar
onde fica a sala da presidência e perguntei a um assessor onde se encontrava o
presidente. Respondeu-me: “Até poucos minutos atrás estava aqui. Não sei para
onde foi. Deve estar na portaria atendendo alguns pobres que sempre vêm atrás
dele“.
Sabemos que existem pobres a quem falta o
indispensável para viver dignamente. São pessoas que vivem, para usar uma
expressão popular, “sem eira nem beira“ ou “não têm onde cair mortos“. Mas
existe outro tipo de pobres: são pessoas excluídas da sociedade por causa de
sua diversidade cultural, de sua língua, sua religião, de seu modo de viver.
É-lhes negada a “identidade“. Um exemplo para esta categoria de seres humanos
são os povos indígenas. Esses descendentes dos primeiros habitantes da Terra de
Santa Cruz sempre tiveram um lugar privilegiado no coração de Dom Luciano. Sou
testemunha disso.
Há muitas histórias para contar, algumas até
pitorescas. Em 1988 foram expulsos os missionários da Missão Catrimani. Dom
Luciano, quando soube desta injustiça e injúria causadas a quem dedica sua vida
aos índios, alterou imediatamente sua agenda e viajou a Roraima para prestar
sua solidariedade aos indígenas e aos missionários. Foi extraordinário o amor
que dedicou aos Ianomâmi. Ouso até afirmar que a demarcação da área indígena
Ianomâmi em 1992 foi de certa maneira fruto do empenho de Dom Luciano. Várias
vezes ele foi a Roraima para todo mundo saber de que lado o presidente da CNBB
batalhava. Nas minhas visitas a ele em Brasília sempre achou tempo, em hora muitas
vezes já adiantada para receber-me junto com o secretário do Cimi, o já
falecido Antônio Brand. Às vezes cochilou de tão cansado que estava, mas mesmo
assim assimilava o que nós falávamos a ele. Uma vez fomos recebidos pelo
General-de-brigada Rubens Bayma Denys, ministro-chefe do Gabinete Militar: Dom
Luciano, Dom Aldo, bispo de Roraima, e eu como presidente do Cimi.
Reivindicamos, denunciamos, propomos. Insistimos na defesa dos direitos
indígenas às suas terras ancestrais. Dom Luciano estava sentado ao meu lado. De
repente percebi que o sono o dominou durante a fala monótona do General.
Preocupado que o General podia não gostar, desferi uma leve cotovelada a Dom
Luciano. Para minha maior surpresa, abriu os olhos e com a mente mais lúcida
reagiu ao que o General acabou de dizer.
Em 1987 o Cimi empenhou-se junto com
os povos indígenas pela inscrição de seus direitos na nova Constituição
Federal. Grandes interesses nas áreas tradicionalmente ocupadas pelos índios e
ambições inconfessáveis da parte de segmentos anti-indígenas fizeram um dos
maiores matutinos do país mover uma sórdida campanha contra o Cimi. O jornal
lamentavelmente se prestou a publicar documentos falsificados ou inexistentes. Os
inimigos da causa indígena, especialmente os interessados na exploração mineral
em áreas indígenas, tentaram assim enfraquecer a presença do Cimi nas
articulações da Assembleia Nacional Constituinte e desmoralizar de uma vez este
organismo missionário vinculado à CNBB. Pretendiam com isso confundir os
constituintes e facilitar a legalização do saque mineral em áreas indígenas.
Foram dias de aflição e intenso sofrimento. Fui pedir
ajuda e conselho ao Dom Luciano, pois senti-me profundamente atingido pelo ódio
dos urdidores desta campanha. Lembro-me perfeitamente da resposta, cheia de
bondade, que Dom Luciano me deu: “Erwin, há oito bem-aventuranças. Sete você
pode viver sozinho. Para a oitava bem-aventurança precisa dos outros, precisa
de quem o persegue. Mas mesmo assim, sofrer ‘perseguição por causa da justiça’
(Mt 5,10) não deixa de ser uma bem-aventurança”. Quando em 16 de outubro
daquele ano fui vítima de um acidente automobilístico premeditado para tirar-me
a vida e passei em
seguida seis semanas no Hospital Guadalupe em Belém, me recordei destas
palavras do bom Dom Luciano.
No dia 14 de agosto 1987 Dom Luciano exigiu do jornal
que veiculou as matérias ultrajantes o direito de resposta, responsabilizando-o
por difamação e injúria por apresentar acusações baseadas em documentos falsos
ou inexistentes. No dia 20 de agosto, em debate promovido pela Fundação Pedroso
Horta, Dom Luciano Mendes de Almeida desmontou ponto a ponto a grande trama.
Esclareceu que o matutino mentiu, distorceu fatos e funcionou como instrumento
de empresas mineradoras interessadas no subsolo das terras indígenas. Quem
assistiu a esse discurso no Congresso comentava depois que nunca se viu Dom
Luciano tão indignado e irritado como naquela hora. Sua já proverbial calma
cedeu de repente lugar a uma incisiva e intransigente exigência de reparação
das injustiças cometidas contra o Cimi.
Quero encerrar esta homenagem com outra experiência
que jamais esquecerei. Na noite do dia 22 de fevereiro de 1990, a diretoria do
Cimi estava reunida com Dom Luciano. Foi seu último compromisso antes de partir
de Brasília. No dia seguinte aconteceu aquele terrível acidente que quase
ceifou sua vida. Ficou por semanas entre a vida e a morte. Em 15 de março
visitei-o no hospital e ao apertar a sua mão ele me confidenciou: “Vivo uma
experiência profunda de sofrimento, mas ofereço tudo pela Igreja no Brasil e
pelos povos indígenas que amo com carinho!” Naquela hora me veio à mente a
figura do “Servo Sofredor“ do Profeta Isaías: “homem do sofrimento, experimentado
na dor“ (Is 53,3).
Dom Luciano terminou sua passagem por este mundo no
dia 27 de agosto de 2006. “Morreu com fama de santo, como comprovam as centenas
de visitas a seu túmulo, onde as pessoas depositam flores, fotografias e
bilhetes, com agradecimentos e pedidos de intercessão“ informou o nosso
arcebispo Dom Geraldo Lyrio Rocha quando no passado dia 15 de maio recebeu da
Congregação para as Causas dos Santos autorização para iniciar o processo de
beatificação do Servo de Deus Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida SJ,
ex-arcebispo de Mariana nas Minas Gerais.
Acredito que sua futura beatificação e canonização
fará brilhar uma luz de esperança para os povos autóctones do Brasil. Se em
vida Dom Luciano ofereceu seus sofrimentos a Deus em favor dos índígenas, na glória
dos céus será definitivamente seu padroeiro e intercessor.
Mariana, Minas Gerais, 27 de agosto de 2014
Dom Luciano
Pedro Mendes de Almeida SJ