Figuras exemplares de cuidado (Saber Cuidar III)
Figuras exemplares de cuidado (Saber
Cuidar III)
O
modo-de-ser cuidado só convence verdadeiramente quando se transforma em saga na
biografia de pessoas e modela situações existenciais.
O cuidado das nossas mães e avós
Existem
figuras que concentram e irradiam cuidado de maneira privilegiada: as
nossas mães e as mães das nossas mães, as nossas avós. Não precisamos de
pormenorizar essa experiência. Ela é fundamental em cada pessoa, pois o
primeiro continente que a criança conhece é a sua própria mãe.
Ser mãe é mais
do que uma função; é um modo-de-ser que engloba todas as dimensões da
mulher-mãe, o seu corpo, a sua psique e o seu espírito. Com o seu cuidado
e carinho, a mãe continua a gerar os filhos e as filhas durante toda a vida.
Mesmo que tenham morrido, sempre permanecerão no seu coração materno. Nos
momentos de perigo, são invocadas como referência de confiança e de salvação. É
através das mães que cada um aprende a ser mãe de si mesmo, na medida em que
aprende a aceitar-se, a perdoar as próprias fraquezas e a alimentar o sonho de
um grande útero acolhedor de todos. Representam também o modo de ser mãe as
educadoras e os educadores que se devotam ao crescimento humano, mental e
espiritual dos educandos, as enfermeiras que cuidam dos seus doentes e tantas
outras pessoas que anonimamente se desvelam no cuidado de alguém.
Jesus, um ser de cuidado
Jesus de
Nazaré, ao lado de Buda, é uma das figuras religiosas que mais encarnam o
modo-de-ser-cuidado. Revelou à humanidade o Deus-cuidado,
experimentando Deus como Pai e Mãe divinos que cuidam de cada cabelo da nossa
cabeça, da comida dos pássaros, do sol e da chuva para todos (cf. Mt 5,45; Lc
21,18). Jesus mostrou cuidado especial com os pobres, os famintos, os
discriminados e os doentes. Enchia-se de compaixão e curava a muitos. Facto
inusitado para a época, associou a si várias mulheres como discípulas (Lc
8,2-3). Cultivou um amor terno para com as amigas Marta e Maria (Jo 11,20-28;
Lc 10,38-42).
Fez da
misericórdia a chave da sua ética. É pela misericórdia que os seres humanos
chegam ao Reino da Vida; sem a misericórdia, não há salvação para ninguém (Mt
25,36-41). As parábolas do bom samaritano que mostra compaixão pelo caído na
estrada (Lc 10,30-37) e a do filho pródigo acolhido e perdoado pelo pai (Lc
15,11-32) são expressões exemplares de cuidado e de plena humanidade.
Morrendo na
cruz, cuida dos ladrões crucificados ao seu lado e cuida de sua mãe,
entregando-a aos cuidados do discípulo predilecto João (Jo 19,26-27).
Jesus foi um ser de cuidado. O evangelista Marcos diz com extrema finura: “Ele
fez bem todas as coisas; fez surdos ouvir e mudos falar.” (Mc 7,37). Teve cuidado
com a vida integral.
Francisco de Assis: a fraternidade do irmão universal
Na tradição
ocidental, Francisco de Assis (1182-1226) é visto como uma figura exemplar de
grande irradiação. Tudo na sua vida vem urdido de extremo cuidado com a
natureza, os animais, as aves e plantas, os pobres e especialmente com a sua
amiga e cúmplice, Clara de Assis. Com fina percepção, sentia o laço de
fraternidade e de irmandade que nos une a todos os seres. Ternamente, chama a
todos irmãos e irmãs: o Sol, a Lua, as formigas e o lobo de Gubbio. As coisas
têm coração. Ele sentia o seu pulsar e nutria veneração e respeito por cada
ser, por menor que fosse. Nas hortas, também as ervas daninhas tinham o seu
lugar, pois, à sua maneira, elas louvam o Criador.
Os biógrafos
do tempo, como os co-irmãos Tomás de Celano e São Boaventura, testemunham o
impacto de tanta suavidade. Afirmam que Francisco “resgatou a inocência
original”, que “é o homem novo, dado ao mundo pelo céu” e que, finalmente,
representa “o evangelista dos novos tempos”. Efectivamente, face às demandas da
nossa cultura ecológica mundial, reconhecemos a sua grande actualidade. Somos
velhos, ainda aferrados ao modo-de-ser do trabalho-dominação-agressão da
natureza. São Francisco, no entanto, é verdadeiramente alternativo pelo seu
radical modo de ser-cuidado com respeito, veneração e fraternidade para com
todas as coisas.
Num
pergaminho do convento do Monte Alverne, onde recebeu no seu corpo os sagrados
estigmas, conservou-se o seu último adeus às criaturas. Estava extremamente
doente e prestes a morrer. Despede-se de Frei Masseo, do irmão rochedo e do
irmão falcão. Por fim diz: “Io mi parto da voi con la persona, ma vi lascio il
mio cuore”, quer dizer, “eu me aparto de vós como pessoa, mas deixo-vos o meu
coração.” Com efeito, o coração de Francisco significa um estilo de vida, a
expressão genial do cuidado, uma prática de confraternização e um
renovado encantamento pelo mundo. Recriar esse coração nas pessoas e resgatar a
cordialidade (cor coração em latim) nas relações poderá suscitar no
mundo actual o mesmo fascínio pela sinfonia do universo e o mesmo cuidado com a
irmã e mãe Terra, como foi paradigmaticamente vivido por S. Francisco.
Madre Teresa de Calcutá: o princípio misericórdia
Com certeza
um dos arquétipos vivos do cuidado essencial é a religiosa católica
Madre Teresa de Calcutá (1910-1997). Nascida na Albânia, trabalhou a partir de
1928 na Índia como missionária e professora num semi-internato. Tudo corria no
ritmo normal de uma escola, quando, em 1946, viajando de comboio, disse ter
escutado uma voz clara que lhe ordenava deixar o convento para ajudar os
pobres, vivendo no meio deles. Entendeu-a como chamamento divino.
Efectivamente, aos 38 anos de idade, saiu do mosteiro, trocou o seu pesado
hábito negro por um prático e barato sari de algodão. Foi morar na periferia
miserável de Calcutá, num casebre, vivendo à base de arroz e sal como os
pobres, servindo os pobres. À medida que foram chegando seguidoras, fundou a Ordem
das Missionárias da Caridade. Além dos três votos de pobreza, obediência e
castidade, ela impôs-se um quarto: “Dedicar-se de todo coração e livremente ao
serviço dos mais pobres dos pobres.”
Em Calcutá
há milhares e milhares de miseráveis que nascem, vivem e morrem na rua. Madre
Teresa cuidou logo de fundar a Casa dos Moribundos. Recolhia-os das ruas e
levava-os para que pudessem morrer com dignidade. Começava assim uma obra de
compaixão e misericórdia que se estendeu por muitas cidades da Índia, do Paquistão
e de outros países, sempre com o fito de conferir dignidade e humanidade aos
que iam morrendo.
A Ordem das
Missionárias da Caridade cultiva um carisma, ligado directamente à ternura
vital, o carisma de tocar as pessoas na sua pele, nos seus corpos e nas suas
chagas. “Toca-os, lava-os, alimenta-os”, insistia Madre Teresa com as suas
irmãs e os muitos voluntários que de todo o mundo acorriam para ajudar em suas
obras. Outras vezes dizia: “Dá Cristo ao mundo, não o mantenhas para ti mesma
e, ao fazê-lo, usa as tuas mãos.” A sua biógrafa, Anne Sebba, comenta: “A
capacidade de tocar, com as suas implicações mais amplas, é especialmente
importante na Índia, onde o conceito de “intocabilidade” é tão real; este é o
verdadeiro espírito missionário em acção; é mais importante tocar que curar.” A
mão que toca, cura porque leva carícia, devolve confiança, oferece acolhimento
e manifesta cuidado. A mão faz nascer a essência humana naqueles que são
tocados.
Em 1979
ganhou o Prémio Nobel da Paz. Deu-lhe o verdadeiro sentido: “Aceito o prémio em
nome dos pobres… O prémio é um reconhecimento do mundo dos pobres.”
Mahatma Gandhi: a política como cuidado com o povo
Uma figura
que impressionou todo o século XX é seguramente Gandhi (1869-1948). Nascido na
Índia, formou-se em Direito em Londres e trabalhou por mais de 20 anos na
África do Sul (1893- 1915) defendendo os imigrantes indianos, vítimas da
segregação racial. Em África, entrou em contacto com os ideais anunciados pelo
grande escritor russo, Leon Tolstoi (1883-1945), autor dos famosos romances Guerra
e Paz e Anna Karenina. Este via a essência da mensagem de Jesus no
Sermão da Montanha, no amor, na recusa de toda a violência, na veneração aos
pobres e no compromisso com uma vida simples. Tais ideias impressionaram
profundamente Gandhi e ajudaram-no a formular a sua própria visão da
não-violência e da actuação política como cuidado com o povo. Chegou a fundar
uma comunidade rural “Tolstoi”, onde tentou viver esses ideais com outros amigos.
De volta à
Índia, entregou-se à tarefa de organizar o povo contra a dominação inglesa.
Começou por pregar o boicote aos produtos ingleses, especialmente aos tecidos.
Incentivou o retomar da tradição familiar de tecer as roupas em casa. Convocou
à desobediência civil. Foi preso inúmeras vezes. Famosa ficou a Marcha para o
Mar em 1930. Por um decreto dos colonizadores, os indianos não poderiam comprar
sal, a não ser aquele monopolizado pelos ingleses. Gandhi mobilizou milhares e
milhares de pessoas que caminharam em direcção ao mar, para dele extrair o sal
de que precisavam. Foi preso, mas conseguiu a liberação completa do sal.
Gandhi
definia a política como “um gesto amoroso para com o povo”. Por outras
palavras, política como cuidado com o bem-estar de todos e ternura
essencial para com os pobres. Ele mesmo confessa: “Entrei na política por amor
à vida dos fracos; morei com os pobres, recebi os párias como hóspedes, lutei
para que tivessem direitos políticos iguais aos nossos, desafiei os reis,
esqueci-me das vezes em que estive preso.”
Dois
princípios básicos norteavam a sua prática: a força da verdade (satiagra)
e a não-violência activa (ahimsa). Acreditava profundamente que a
verdade possui em si uma força invencível contra a qual são inócuas as manipulações,
as violências, as armas e as prisões. Tinha profunda convicção de que, por
detrás dos conflitos, existe uma verdade latente a ser identificada. A função
do político é crer nesta verdade, trazê-la à tona para todos e agir em
coerência com ela, mostrando-se disposto a suportar os sacrifícios que tal
postura comporta. Acreditava firmemente que a verdade, embora tardia, sempre
venceria.
A crença na
força da verdade levou-o à não-violência activa (ahimsa), que não significa
cruzar os braços, mas usar todos os meios pacíficos para alcançar os objectivos
almejados. Importa que os meios e os fins tenham a mesma natureza. Fins bons
requerem meios bons. Pratica-se a não-violência activa, por exemplo, ocupando
ruas, organizando manifestações multitudinárias, fazendo jejuns e preces, e
oferecendo o próprio corpo para deter a violência.
Gandhi
elaborou um pequeno credo em forma de oração, recitado todos os dias: “Não
terei medo de ninguém sobre a terra. Temerei apenas a Deus. Não terei má
vontade para com ninguém. Não aceitarei injustiças de ninguém. Vencerei a
mentira pela verdade. E, na minha resistência à mentira, aceitarei qualquer
tipo de sofrimento.”
Gandhi era
profundamente religioso. Conhecia o cristianismo a fundo e tinha grande
veneração por Jesus. Mas continuou na sua religião indiana, pois acreditava que
todas as religiões, no seu coração, captam e expressam a mesma verdade divina.
Tinha profunda convicção de que a prece e o jejum podiam modificar situações
políticas. Por isso, sempre que havia algum impasse político maior, punha-se em
prece e jejum por semanas. Convocava as multidões a praticar o mesmo. Fazia
tremer o Império Britânico e demovia as forças contrárias.
Possuía um
profundo cuidado para com todos os seres. Como um mandamento pregava:
“Amarás a mais insignificante das criaturas como a ti mesmo. Quem não fizer
isto jamais verá a Deus face a face.”
Conclusão
O cuidado e o futuro dos espoliados e da Terra
A categoria cuidado
mostrou-se a chave decifradora da essência humana. O ser humano possui
transcendência e por isso viola todos os tabus, ultrapassa todas as barreiras e
contenta-se apenas com o infinito. Ele possui algo de Júpiter dentro de si; não
sem razão, pois dele recebeu o espírito.
O ser humano
possui imanência e por isso se encontra situado num planeta, enraizado num
local e plasmado dentro das possibilidades do espaço-tempo. Ele tem algo da
Tellus/Terra dentro de si; é feito de húmus, donde deriva a palavra “homem”.
O ser humano
encontra-se sob a regência do tempo. Este não significa um puro correr, vazio
de conteúdos. O tempo é histórico, feito pela saga do universo, pela prática
humana, especialmente pela luta dos oprimidos, em busca da sua vida e
libertação. Constrói-se passo a passo; por isso, é sempre concreto,
concretíssimo. Mas, simultaneamente, o tempo implica um horizonte utópico,
promessa de uma plenitude futura para o ser humano, para os excluídos e para o
cosmos. Somente buscando o impossível se consegue realizar o possível. Em razão
dessa dinâmica, o ser humano possui algo de Saturno, senhor do tempo e da
utopia.
Mas não
basta suster tais determinações. Elas, na verdade, dilaceram o ser humano.
Colocam-no distendido e crucificado entre o céu e a terra, entre o presente e o
futuro, entre a injustiça e a luta pela liberdade.
Que alquimia
forjará o elo entre Júpiter, Tellus/Terra e Saturno? Que energia articulará a
transcendência e a imanência, a história e a utopia, a luta pela justiça e a
paz, para que construam o humano plenamente?
É o cuidado
que enlaça todas as coisas; é o cuidado que traz o céu para dentro da
terra e coloca a terra dentro do céu; é o cuidado que fornece o elo de
passagem da transcendência para a imanência, da imanência para a transcendência
e da história para a utopia. É o cuidado que confere força para buscar a
paz no meio dos conflitos de toda a ordem. Sem o cuidado que resgata a
dignidade da humanidade condenada à exclusão, não se inaugurará um novo
paradigma de convivência.
O cuidado
é anterior ao espírito (Júpiter) e ao corpo (Tellus). O espírito humaniza-se e
o corpo vivifica-se quando são moldados pelo cuidado. Caso contrário, o
espírito perde-se nas abstracções e o corpo confunde-se com a matéria informe.
O cuidado faz com que o espírito dê forma a um corpo concreto, dentro do
tempo, aberto à história e dimensionado para a utopia (Saturno). É o cuidado
que permite a revolução da ternura, ao tornar prioritário o social sobre o
individual e ao orientar o desenvolvimento para a melhoria da qualidade de vida
dos humanos e de outros organismos vivos. O cuidado faz surgir o ser
humano complexo, sensível, solidário, cordial, conectado com tudo e com todos
no universo.
O cuidado
imprimiu a sua marca registada em cada porção, em cada dimensão e em cada dobra
escondida do ser humano. Sem o cuidado o humano far-se-ia inumano.
Tudo o que
vive precisa de ser alimentado. Assim, o cuidado, a essência da vida
humana, precisa também de ser continuamente alimentado. As ressonâncias do cuidado
são a sua manifestação concreta nos vários aspectos da existência e, ao mesmo
tempo, o seu alimento indispensável. O cuidado vive do amor primordial,
da ternura, da carícia, da compaixão, da convivialidade, da medida justa em
todas as coisas. Sem cuidado, o ser humano, como um tamagochi,
definha e morre.
Hoje, na
crise do projecto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado em toda
a parte. As suas ressonâncias negativas evidenciam-se pela má qualidade da
vida, pela penalização da maioria empobrecida da humanidade, pela degradação
ecológica e pela exaltação exacerbada da violência.
Não
busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O ethos está no próprio
ser humano, entendido na sua plenitude que inclui o infinito. Ele precisa de se
voltar para si mesmo e de redescobrir a sua essência, que se encontra no cuidado.
Que o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera
humana e que prevaleça em todas as relações! O cuidado salvará a vida,
fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como pátria e mátria de todos
nós.
Leonardo
Boff
Saber
Cuidar. Ética do Humano – Compaixão pela Terra
Petrópolis,
Ed. Vozes, 1999