Leitura Orante



A Lectio Divina ou o exercício de leitura orante da Sagrada Escritura é uma privilegiada à qual somos todos convidados diante das muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura. Esta maneira de ler a bíblia é tão antiga como a própria Igreja.  É a leitura que os cristãos faziam da Bíblia para alimentar a fé e a esperança; para animar a caminhada no amor fraterno e solidário.

Inicialmente, não havia uma formulação sistemática do método, era a própria Tradição que se transmitia de geração em geração. No século XII, Guigo, um monge, intuiu e sistematizou o processo de escuta e assimilação da palavra de Deus em quatro etapas ou degraus: Leitura, meditação, oração, contemplação. 

A partir do século XIII houve um grande período em que a bíblia foi banida da vida da Igreja. Com isso, o método da leitura orante não foi mais transmitido e deixou de ser uma referência para a vida de fé no cotidiano das pessoas. Graças ao movimento bíblico antes do Concilio Vaticano II que culminou na Dei Verbum, e graças à reforma litúrgica com a introdução da língua falada pelo povo e dos lecionários, o exílio da Palavra foi interrompido. Sobre o Método da Leitura Orante a própria Dei Verbum o recomenda com grande insistência. Assim ela reapareceu no meio das comunidades por meio da leitura popular da Bíblia, começou a ser cultivada nas comunidades religiosas e foi retomada com mais intensidade pelos monges e monjas, reconhecidos historicamente como seus guardiões. 

Contudo, em geral, o uso da Palavra na liturgia e mais especificamente nas homilias, bem como na meditação pessoal de tantas pessoas que buscam aprofundar seu caminho de fé, não deixa de causar certa preocupação. A avalanche de roteiros homiléticos, nem sempre resultante de uma leitura assídua e pessoal, muitas vezes, forçando a atualização imediata, favorece certa passividade diante dos textos propostos, dispensando ministros/as e assembléia de um esforço pessoal necessário para chegar a uma compreensão mais profunda da palavra de Deus. Se o anúncio do(a) leitor(a) ou pregador(a) não passou pelo crivo da meditação pessoal em sua seqüência de leitura, meditação e oração, dificilmente a assembléia será tocada pela Palavra, que é viva e eficaz e não volta sem produzir o seu fruto. 

Alegramo-nos hoje com as perspectivas que se abriram a partir do documento de Aparecida (2007); das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora do Igreja do Brasil (2008-2010); e do sínodo sobre a Palavra de Deus na vida e missão da Igreja (2008) que nos chamam a atenção para a necessidade de uma leitura continua e assídua da Bíblia apontando a Lectio Divina como método mais eficaz para ler e compreender a Sagrada Escritura. Neste sentido relembramos a seguir os passos do método. Antes de tudo, é importante ir para a leitura tendo o texto escolhido. Não é aconselhado abrir a bíblia aleatoriamente nem passar de um texto a outro, mas de fixar-se em determinado trecho. O lecionário cotidiano oferece um guia precioso neste sentido. Muito recomendada também é a leitura continua de um livro da Escritura, de preferência seguindo o ano litúrgico, por exemplo, o livro de Isaías no advento, ou o evangelho de Marcos no tempo comum do ano B e assim por diante. 

Antes de começar a leitura, colocar-se à disposição da Palavra, prestar atenção aos próprios sentimentos, acalmar-se de toda agitação. Em atitude de fé invocar o Espírito, pois é ele que pode garantir docilidade e abertura interior. 

a) A leitura - O primeiro passo é determinante. Leitura atenta e perseverante do texto com uma boa dose de disciplina que inclui lugar e tempo marcados, texto determinado, regularidade... Ler devagar e com atenção.  Ler como se fosse pela primeira vez e levar em conta o estilo literário, os tipos de linguagens usadas pelos autores dos livros (saga, poesia, evangelho, apocalipses, novelas, biografias, etc...). Ler levando em consideração que o texto não foi escrito para mim, ou para resolver problemas para as nossas comunidades hoje; ele foi escrito para dar respostas aos problemas que as comunidades estavam enfrentando na época do autor. Por isso devo levar em consideração a situação sócio-política-econômica-religiosa-cultural da época em que o texto foi escrito e levar em consideração as imagens, as ações, os personagens (homens, mulheres, órfãos, estrangeiros, viúvas, doentes, crianças, pobres...). 

Há técnicas e perguntas que podem ajudar neste primeiro passo: Quem escreveu? Quando? Onde? Por quê? Qual a mensagem que o autor queria dar para as comunidades do seu tempo? Outra técnica é: sublinhar palavras ou frases que chamam a atenção, transcrever o texto, prestar atenção nos verbos e comparar diversas traduções, prestando atenção nas diferenças. Se durante a leitura ocorrer a lembrança de outro texto bíblico, ou de um fato da vida, seguir atentamente o que vem à memória. 

A leitura quando bem feita, como a lectio divina propõe, ajuda a superar o fundamentalismo. Quando malfeita faz só aumentá-lo. O fundamentalismo é uma grande tentação que se instalou na mente de muita gente. Ele separa-o texto do resto da vida e da história do povo e o absolutiza como a única manifestação de Deus. A vida, a história do povo, a comunidade, já não teria mais nada a dizer sobre Deus e a sua vontade. O fundamentalismo anula a ação da Palavra de Deus na vida. É a ausência total de consciência critica. Ele distorce o sentido da Bíblia e alimenta o moralismo, o individualismo e o espiritualismo na interpretação dela.  E uma visão alienada que agrada aos opressores do povo, pois ela impede que os oprimidos tomem consciência da iniqüidade do sistema montado e mantido pelos poderosos. Superar o fundamentalismo só é possível a medida que através da leitura, o leitor consiga ver dentro de seu contexto de origem e, ao mesmo tempo, perceber nele o reflexo da situação humana, tão conflitiva, confusa e controvertida, que hoje vivemos. Mas é bom ter sempre em mente que a bíblia primeiramente foi vivida, contada e recontada, cantada e rezada, depois escrita. Tudo o que está na Bíblia foi escrito bem mais tarde do acontecido.

b) A meditação  - O segundo passo é a meditação, tempo de repetir e mastigar, de sentir o sabor ou, como dizia os antigos, de ruminar a palavra. Com a leitura atenta e perseverante emerge também o que o texto diz para mim, neste momento da vida. Como no encontro de Jesus com os discípulos de Emaús, Jesus relembra as Escrituras para elucidar os acontecimentos, fazendo emergir o sentido oculto dos fatos. É este encontro entre a Palavra e a vida que faz o coração arder. Assim a meditação tem como objetivo atualizar o texto para os dias de hoje e isso eu faço perguntando: Este texto que acabei de ler pode trazer luz , esperança, novo alento para mim e para a minha comunidade hoje? O que há de semelhante e diferente entre a situação do texto a minha situação ou a situação da minha comunidade?

A luz desprendida da Palavra provoca o confronto, gera a crise, ilumina, leva ao discernimento e à conversão... Mas nada deve ser forçado, é simplesmente permitir que a palavra acenda a lâmpada do coração. A seu tempo ela dará frutos ... A Palavra requer uma atitude de gratuidade, de despojamento, de total abertura, afinal estamos diante de uma presença que se dá a conhecer à medida que nos abrimos à sua vinda. 

c) A oração - Há uma força vital que emana da própria escritura, quando esta é levada a sério pela leitura assídua e pela meditação. Mais que uma força é uma presença que fala aos nossos sentimentos e faz brotar de dentro do coração, tocado pela Palavra, uma resposta de amor em forma de agradecimento, de pedido de perdão, de intercessão...  Como no episódio de Emaús eles sentaram à mesa para dar graças...  Orígenes lembra: "O que não se consegue com o próprio esforço deve ser pedido na oração". 

d) A contemplação - O último degrau da leitura orante é a contemplação, ponto de chegada e novo começo. Contemplar é fazer silêncio para perceber a ação que Deus operou em cada um de nós através do texto. A contemplação nos ajuda a entender o que Deus está querendo de nós através do texto. E com isso somos convidados a assumir um compromisso de vida nos perguntando: que ação evangélica esse texto esta me sugerindo? Mas antes de responder essa pergunta é preciso que nos ocupemos de que a leitura do texto por si só, não abre os olhos. Não basta conhecer a Palavra de Deus. É preciso colocá-la em prática. A leitura, ou seja, a teoria, só faz animar, estimular, dar coragem, arder o coração. É preciso ir mais adiante, e tudo isso ser experimentado na prática, assumindo um compromisso de vida, pois é a prática que abre os olhos (Mt 5, 24; Lc 6,47-48). * * * *