Sintomas da crise civilizacional (Saber Cuidar II)
Sintomas da crise civilizacional (Saber
Cuidar II)
O sintoma
mais doloroso, já constatado há décadas por analistas e pensadores
contemporâneos, é um difuso mal-estar da civilização. Aparece sob o fenómeno do
descuido, da falta de atenção e do abandono, numa palavra, da falta de cuidado.
— Há um
descuido e uma falta de atenção pela vida inocente de crianças, usadas como
combustível na produção para o mercado mundial. Os dados da Organização Mundial
da Infância de 1998 são aterradores: 250 milhões de crianças trabalham. Na
América Latina 3 em cada 5 crianças trabalham. Na África, 1 em cada 3. E na
Ásia 1 em cada 2. São pequenos escravos a quem se nega a infância, a inocência
e o sonho. Não causa admiração se são assassinadas por esquadrões de extermínio
nas grandes metrópoles da América Latina e da Ásia.
— Há um
descuido e uma ignorância manifestos em relação ao destino dos pobres e
marginalizados da humanidade, flagelados pela fome crónica, mal sobrevivendo à
atribulação de mil doenças, outrora erradicadas e surgindo actualmente com
redobrada virulência.
— Há um
descuido e um descaso imensos quanto à sorte dos desempregados e aposentados,
sobretudo dos milhões e milhões de excluídos do processo de produção, tidos
como descartáveis e zeros económicos. Esses nem sequer ingressam no exército de
reserva do capital. Perderam o privilégio de serem explorados a preço de um
salário mínimo e de alguma segurança social.
— Há um
descuido e um abandono dos sonhos de generosidade, agravados pela hegemonia do
neoliberalismo, com o individualismo e a exaltação da propriedade privada que
tal comporta. Menospreza-se a tradição da solidariedade. Faz-se pouco dos
ideais de liberdade e de dignidade para todos os seres humanos.
— Há um
descuido e um abandono crescente da sociabilidade nas cidades. A maioria dos
habitantes sentem-se desenraizados culturalmente e alienados socialmente.
Predomina a sociedade do espectáculo, do simulacro e do entretenimento.
— Há um
descuido e uma falta de atenção pela coisa pública. Organizam-se políticas
pobres para os pobres; os investimentos sociais em segurança alimentar, saúde,
educação e habitação são, em geral, insuficientes. Há um descuido vergonhoso
pelo nível moral da vida pública, marcada pela corrupção e pelo jogo explícito
de poder de grupos que chafurdam no pantanal de interesses corporativos.
— Há um
abandono da reverência, indispensável para cuidar da vida e da sua fragilidade.
A continuar este processo, até meados do século XXI terão desaparecido
definitivamente mais de metade das espécies animais e vegetais actualmente
existentes. É o que nos informa o conceituado e recente relatório sobre o
estado da Terra (The State of Environment Atlas) dos Estados Unidos. Com
eles desaparece uma biblioteca de conhecimentos acumulados pelo universo no
decurso de 15 biliões de anos de penoso trabalho evolutivo.
— Há um
descuido e uma falta de atenção na salvaguarda da nossa casa comum, o planeta
Terra. Os solos são envenenados, os ares são contaminados, as águas são
poluídas, as florestas são dizimadas, as espécies de seres vivos são
exterminadas; um manto de injustiça e de violência pesa sobre dois terços da
humanidade. Um princípio de autodestruição está em acção, capaz de liquidar o
subtil equilíbrio físico-químico e ecológico do planeta e de devastar a
bioesfera.
— Há
descuido e falta de atenção generalizada na forma como se organiza a habitação,
pensada para famílias minúsculas, obrigadas a viver em habitações insalubres.
Milhões e milhões são condenados a viver em bairros de lata e bairros sociais
sem qualquer qualidade de vida, sob a permanente ameaça de aluimentos de terra,
que fazem em cada ano milhares de vítimas. As formas de vestir de estratos
importantes da juventude revelam decadência dos gostos e dos costumes.
Recorre-se frequentemente à violência para resolver conflitos interpessoais e
institucionais, normalmente superáveis mediante o diálogo e a mútua
compreensão. Atulhados de aparatos tecnológicos, vivemos tempos de impiedade e
de insensatez. Sob certos aspectos, regredimos à barbárie mais atroz.
Leonardo
Boff
Saber
Cuidar. Ética do Humano – Compaixão pela Terra
Petrópolis,
Ed. Vozes, 1999