Carta Pastoral do Repam

Panamazônia: fonte de vida no coração da Igreja
Bogotá, Colômbia, 16 a 18 de novembro de 2015

Irmãos e irmãs em Cristo
          Consideramos nosso dever de pastores compartilhar nossas preocupações e angústias com os irmãos e irmãs que vivem na Panamazônia. Deus, em seu infinito amor, criou essa maravilhosa região para todos: indígenas, ribeirinhos, migrantes, habitantes de vilas, de cidades e de grandes metrópoles. As condições de vida destes povos com suas culturas e o seu futuro nos impelem a ficar mais próximos uns dos outros e a viver em “rede” para resistirmos juntos às investidas de devastação e violência. É da desta maior proximidade e solidariedade que emerge nossa esperança. Amazônia tem futuro. Nós, que vivemos nessa região, somos chamados a construi-lo.
1. Preocupações Pastorais
Ao fazermos uma retrospectiva sobre os mais de quinhentos anos nos quais a Igreja católica está presente em terras amazônicas, encontramos luzes e sombras. Ao lado dos mártires que resistiram à conquista havia quem colaborasse com os diferentes sistemas de colonização. Nossa primeira atitude diante dessa história é um humilde pedido de perdão. Pedimos perdão pelas vezes que não conseguimos nos livrar da influência da empresa colonial e pelas vezes que pensamos ser suficiente salvar almas, negligenciando, porém, os corpos. Muitos missionários estavam convictos de que uma missão sem contar com o braço secular armado seria uma empresa infrutífera. E A administração colonial bem sabia que sem os missionários seria impossível dominar os primeiros habitantes dessas terras. A busca de ouro dos conquistadores comprometeu a busca de almas dos missionários.[1]
Uma sincera conversão e a vontade de aprender dos erros do passado estão visceralmente ligadas a nosso pedido de perdão por não termos aceito sempre os habitantes da Amazônia como nossos primeiros interlocutores pastorais. No entanto, a bem da verdade, é preciso lembrar também os acertos da presença eclesial e pastoral no passado e nos dias de hoje na região panamazônica que “é pluriétnica, pluricultural e plurirreligiosa. Nela, cada vez mais, se intensifica a disputa pela ocupação do território. As populações tradicionais da região querem que seus territórios sejam reconhecidos e legalizados” (DAp 86).
A voz de profetas ressoava e está ressoando no silencio das selvas, a coragem de confessores enfrentava e está enfrentando os interesses privados e o sangue dos mártires banhava e está banhando a terra e os rios da Amazônia. Com o Papa Francisco afirmamos que “a Igreja está na Amazônia não como aqueles que têm as malas na mão para partir depois de terem explorado tudo o que puderam. Desde o início, a Igreja está presente na Amazônia com missionários, congregações religiosas, sacerdotes, leigos e bispos, e lá continua presente e determinante no futuro daquela área”.[2] Hoje, a Igreja da Amazônia é “uma Igreja pobre para os pobres” (EG 198).
          A expansão do grande capital na exploração da Amazônia através da mineração, agropecuária, construção de estradas, hidrelétricas e empresas madeireiras exige da Igreja maior presença profética. As antigas desobrigas ou tradicionais visitas esporádicas, uma ou outra vez por ano, são insuficientes para o fortalecimento pastoral das nossas comunidades. Exige-se maior esforço na luta contra o neocolonialismo e neodesenvolvimentismo em curso. Ao valorizar as culturas amazônidas e nos empenhar por uma evangelização inculturada combatemos o neocolonialismo. Ao apoiar as forças políticas que se empenham na valorização de um desenvolvimento regional e microrregional com a participação efetiva da população regional contribuímos para conter o neodesenvolvimentismo. Ambas as perspectivas, a cultural e a econômica, têm grande relevância pastoral.
O papa nos anima a construir uma Igreja com “rosto amazônico” e a aprofundar “a formação de um clero autóctone, inclusive para se ter sacerdotes adaptados às condições locais”[3]. Já em Aparecida (2007), os bispos da América Latina e do Caribe tiveram consciência de que “o número insuficiente de sacerdotes e sua não equitativa distribuição impossibilitam que muitíssimas comunidades possam participar regularmente na celebração da Eucaristia. Recordando que a Eucaristia faz Igreja, preocupa-nos a situação de milhares dessas comunidades privadas da Eucaristia dominical por longos períodos de tempo” (DAp 100e).
Na “Carta do Primeiro Encontro da Igreja Católica na Amazônia legal”, de 2 de novembro de 2013, os bispos da região lamentam: “Causa-nos uma profunda dor ver milhares de nossas comunidades excluídas da eucaristia dominical. A maioria delas só tem a graça de celebrar o Memorial da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor uma, duas ou três vezes ao ano.” Desde o Vaticano II (1962-65) sabemos que, “nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário” (PO 6). Também a Constituição Dogmática “Lumen gentium” fala da Eucaristia como “fonte” e “ponto culminante de toda a vida cristã” (LG 11). Torna-se urgentemente necessário criar estruturas em nossa Igreja para que os 70% de comunidades, que hoje estão excluídas da celebração eucarística dominical, possam participar da “fração do pão” (At 2,42), do “sacramento da piedade, sinal de unidade, vínculo da caridade, banquete pascal” (SC 47)”.
“Relançar a obra da Igreja” (DAp 11) na Amazônia e aprofundar o “processo de inculturação” (EG 126) exige da Igreja na Amazônia fazer propostas “corajosas”, ter “ousadia” e ser “destemido”, como nos fala o Papa Francisco.[4] A inculturação visa a assunção dos últimos como próximos e primeiros. Sua vida é o lugar preferencial da epifania de Deus. Se o ponto de partida da inculturação é a presença no meio da vida fragmentada, o ponto de chegada é a participação da vida integral. Vida fragmentada e vida integral são articuladas por uma proposta, o Evangelho, e por um caminho a percorrer, a missão.
          Nos documentos das Igrejas na Panamazônia, o testemunho missionário vivido no dia a dia se expressou no compromisso de seus pastores com a dignidade da pessoa humana, principalmente os mais empobrecidos, com a defesa de seu meio-ambiente e com uma presença pastoral mais intensa e integral a serviço da vida.

2. Rede Eclesial Panamazônica (REPAM)
O apelo em defesa da vida dos povos da Panamazônia e do seu bioma, ecoou fortemente no Encontro da Rede Eclesial Panamazônica, realizado em Brasília, nos dias 9 a 12 de setembro de 2014. Nesses dias de comunhão entre as Igrejas que compõem os países da Panamazônia, os institutos de vida consagrada missionária nela inserida, as instituições eclesiais, e colaboradores fraternos da Europa e dos Estados Unidos, foi fundada a REPAM, Rede Eclesial Panamazônica como organismo de articulação e comunhão que busca estreitar os laços de colaboração e alcançar uma visão comum do trabalho missionário e evangelizador na região.
          A REPAM se coloca a serviço dos povos da Panamazônia, luta em defesa de sua sabedoria ancestral, de seus territórios e pelo seu direito a uma “participação efetiva nas decisões” que dizem respeito a sua vida e seu futuro. Os povos amazônidas têm “o direito à consulta” diante de todas as políticas implantadas na região. Reconhecemos e valorizamos a sua espiritualidade na relação com a criação.
          A urgência do apelo pela defesa do meio ambiente e da vida dos povos dessa região veio da constatação dos impactos da implantação de projetos macroeconômicos. Articulados em torno da Iniciativa Integral de Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), somados ao avanço do agronegócio e da pecuária predatória, tais projetos colocam em risco a flora e a fauna amazônidas, a sua rica biodiversidade e tornam cada vez mais palpáveis as ameaças do aquecimento global sobre essa região e sua repercussão em todo o planeta.
          Denunciamos esses projetos, sua busca do lucro a qualquer custo, e seus efeitos destruidores que colocam em risco a vida dos povos da Amazônia. Denunciamos a presunção daqueles que definem as estratégias político-econômicas com uma concepção colonialista de progresso que tenta subjugar a Amazônia. Denunciamos igualmente a iniquidade de uma mentalidade científica e civilizatória que menospreza e manipula o saber dos povos autóctones e justifica em sua prepotência a exploração sem limites de todo meio natural, exaurindo e destruindo seus recursos, verdadeiras dádivas de Deus Criador.
          Desejamos levar esse apelo aos participantes da COP 20 (Conferencia de Partesde laConvención Marco de Naciones Unidas sobre Cambio Climático –CMNUCC), que acontecerá no próximo mês de dezembro, em Lima, Peru. Fazemos nossas as preocupações e manifestações daqueles que procuram enfrentar as causas das mudanças climáticas. Empenhamo-nos para fazer ecoar nessa reunião a voz e o testemunho dos povos originários dos países da Amazônia, portadores de um saber ancestral que pode contribuir para o futuro de seu bioma e o “bem viver”[5] de toda humanidade.
          Entendemos que toda a Igreja e a humanidade inteira têm a corresponsabilidade comum na defesa do bioma da bacia amazônica. Assim, pensando nas futuras gerações, urge ouvir a voz de seus povos originários da Panamazônia.

3. Mensagem de Esperança
          Aproveitamos essa oportunidade para levar uma mensagem de esperança a todo o Povo de Deus. Em primeiro lugar, aos homens e mulheres de todas nações, para que se sintam corresponsáveis por nosso planeta, nosso lar comum, e por conseguinte pela Amazônia. Neste nosso mundo dominado por um consumismo desenfreado fazemos um apelo à conversão, a uma mudança de mentalidade e de nossas práticas, de nossos hábitos e atitudes. Precisamos ouvir atentos o Papa Francisco que nos faz um forte apelo “ao respeito e à salvaguarda de toda a Criação que Deus confiou ao homem, não para que a explorasse de maneira inescrupulosa, mas a transformasse em um jardim”[6].
          Desejamos alimentar a perseverança e a esperança dos discípulos e das discípulas missionários que consagram suas vidas no dia a dia da convivência com os povos da Amazônia. Muitos são os leigos e leigas, padres, religiosas e religiosos e bispos que testemunham sua fé no anúncio da Palavra, na vivência comunitária e na solidariedade em todos os âmbitos da vida desses povos. Sua proximidade e sacrifício, ao desdobrarem sua presença em inúmeras comunidades desse imenso território, são o sinal permanente de uma Igreja samaritana e profética, sempre viva e servidora no coração da Amazônia.
          Queremos viver uma “cultura de encontro” com todos os povos indígenas, ribeirinhos, pequenos camponeses e com todas as comunidades de fé. Em meio a tantas dificuldades e ameaças à sua cultura e às suas formas de vida, os discípulos e as discípulas missionários são testemunhas vivas de esperança. A fundação da REPAM e nosso compromisso em estreitar nossos laços de colaboração e comunhão na missão querem prestar um serviço que possa criar suas raízes no solo fértil em que vivem os nossos povos. Nossa união com os habitantes da Panamazônia se enraíza no coração da Trindade que tem o mesmo desígnio para todos: “a vida em plenitude” (Jo 10,10).
Que Nossa Senhora Maria Santíssima, tão carinhosamente amada pelos povos da Amazônia, interceda por nós para que façamos com coragem e intrepidez o que seu Filho hoje e sempre nos pede (cf. Jo 2,5) a nós que temos o privilégio de viver nesse chão sagrado, dádiva divina confiada ao nosso zelo e responsabilidade.


Card. Cláudio Hummes, OFM
Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia

Mons. pedro Ricardo Barreto, S.J.
Presidente Departamento Justicia y solidaridad - Perú

Mons. José Luis Azuaje
O Bispo de Barinas - Venezuela
Presidente del Secretariado Latinoamericano

Hermana Mercedes Leticia Casas Sánchez, F.Sp.S.
Presidenta de la Confederación Caribeña y Latinoamericana de Religiosas y Religiosos - CLAR -

CÁRITAS América latina y el Caribe
REPAM - Rede Eclesial Pan-amazônica

CONSEJO EPISCOPAL LATINOAMERICANO
Departamento Justicia y Solidaridad

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL - CNBB
Comissão Episcopal para a Amazônia


[1]Cf. VIOTTI, Hélio Abranches (org.). Cartas (01.09.1554): Correspondência ativa e
passiva. Obras Completas. Vol. 6, São Paulo, Loyola, 1984, p. 57 [01.09.1554].
[2]Discurso del Santo Padre Francisco enelencuentroconel Episcopado Brasileño. 27 de Julio de 2013. Río de Janeiro, Brasil.
[3]Discurso del Santo Padre Francisco enelencuentroconel Episcopado Brasileño. 27 de Julio de 2013. Río de Janeiro, Brasil.
[4]Discurso del Santo Padre Francisco enelencuentroconel Episcopado Brasileño. 27 de Julio de 2013. Río de Janeiro, Brasil.
[5] O “Sumak Kawsay“ dos povos andinos.
[6]Mensajedel Santo Padre Francisco enAudiencia General. 5 de Junio de 2013. Plaza de San Pedro.